O retrocesso do aborto legal e dos direitos reprodutivos nos EUA.

No dia 30 de Junho de 2014 a Suprema Corte emitiu uma decisão que estabelece precedente para empresas se negarem a pagar seguros de saúde que incluam remédios para controle de natalidade (foram 5 votos, todos homens, contra 4 votos, incluindo 3 mulheres). A decisão se refere ao caso de uma empresa chamada “Hobby Lobby”, conhecida por seu forte cristianismo, a ponto de não vender artigos de comemorações judaicas. A empresa entrou com um processo com o objetivo de ser liberada da responsabilidade do pagamento de remédios de controle de natalidade para suas contratadas através do seguro saúde. Agora, empresas podem se negar a cobrir qualquer tipo de controle de natalidade se apresentarem argumentações sobre sua religião. Nos EUA essa decisão é colocada na mídia como uma “perda” para Obama e seu programa de saúde pública. É o velho debate entre liberais e conservadores. A cobertura da mídia apaga as verdadeiras vítimas dessa decisão: as mulheres. Não é mencionado o fato de que as mulheres estão tendo seus direitos reprodutivos violados.
Essa decisão não é atípica. No atual contexto estadunidense, as mulheres vem enfrentando um enorme retrocesso em relação a seus direitos reprodutivos.

Imagem inline 1Nos Estados Unidos, o aborto é legal desde 1973, e o movimento auto-intitulado “pró-vida” tenta reverter essa decisão desde então. As ações mais recentes desses conservadores anti-aborto têm visado dificultar o acesso das mulheres às clínicas de aborto legal, através protestos às vezes violentos na porta de clínicas e até mesmo ameaças de morte aos médicos que realizam a prática, até mesmo a eliminação de clínicas de aborto legal através de diversas estratégias para torná-las inviáveis financeiramente e fazer com que fechem as portas.

A mais nova estratégia dos conservadores para fazer as clínicas fecharem é pressionar os Estados para passar leis que exigem que para continuar oferecendo aborto, as clínicas tenham que ter status de hospital, um requerimento exagerado visto que essas mesmas clínicas operam há décadas oferecendo abortos seguros para mulheres, o que faz com que sejam necessários investimentos massivos em infraestrutura e licenças, que muitas clínicas não têm recursos para fazer, o que está obrigando muitas a fechar ou parar de oferecer o procedimento. Muitas dessas clínicas também oferecem outros serviços relacionados à saúde da mulher, como prevenção a câncer de mama e útero.

Primeiro é preciso entender também como são essas clínica. São locais que poderiam ser comparados a consultórios particulares de médicos, não tem o mesmo aparato que hospitais ou centros médicos, mas fazem um atendimento adequado. O aborto legalizado nos Estados Unidos é feito com o uso de comprimidos até a 12ª semana, onde a mulher faz o procedimento em casa, e tem um auxílio por telefone ou vídeo-conferência por um médico dessas clínicas. Após as 12 semanas, é feito um procedimento cirúrgico mínimo, onde também não é necessário grandes aparelhagens, mas há necessidade de médicos acompanhando.

sala de procedimento de uma clinica de aborto legal no estado to Texas. Foto: Jennifer Whitney for The New York Times
Sala de procedimento de uma clínica de aborto legal no estado do Texas. foto: Jennifer Whitney para The New York Times

No ano de 2013, 87 clínicas de aborto foram fechadas, a grande maioria por causa dessas leis restritivas. Comparando com o ano anterior é uma queda de 12%.

 

 

 

 

 

O mapa abaixo mostra a quantidade de clínicas que foram fechadas desde que essas leis começaram a passar nos Estados:

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Associação Médica e a Associação de Ginecologistas o Obstetras dos EUA foram contra essas leis, dizendo que não há necessidade de hospitais para a realização do aborto, que as clínicas conseguem atender com segurança as mulheres que as procuram, o que mostra que essas leis não têm como motivação a segurança das mulheres, e sim dificultar o acesso a aborto legal e seguro.

Se as associações médicas não apoiam esse tipo de legislação, então quem apoia? Os religiosos. A atuação dos religiosos tem sido forte, e eles estão comemorando a diminuição do número de clínicas como vítoria para os “pró-vida”.

 Qual é o resultado disso? Os abortos ilegais aumentaram. Ao se fechar clínicas pequenas e em grande número se diminui o acesso das mulheres ao aborto legal e seguro. Principalmente as pobres, pois o deslocamento gera um gasto absurdo que muitas mulheres não têm como pagar. Outro ponto é que o custo do procedimento aumenta quando se passa ser feito em hospitais, novamente impedindo o acesso das mulheres mais pobres ao serviço que deveria ser garantido, visto que todas as mulheres têm direito a realizar aborto legalmente nos EUA. Lembrando que lá não existe sistema público e nem todos os cidadãos têm um plano de saúde, ou seja: muitos gastos são arcados por completo pelos próprios. Uma mulher que tem necessidade de aborto nem sempre tem a condição financeira ou emocional para uma longa viagem cruzando o estado, ou até mesmo ir para outro estado para realizar o procedimento. Se ela não tiver a cobertura do plano de saúde que inclua o controle de natalidade, ela pode chegar a gastar $600 dólares anuais com pílula, que equivaleria cerca de compras de comida por 6 semanas. Os ataques também tiveram como alvo as clínicas de planejamento familiar, impedindo que sejam incluídos também no programa de saúde, ou Obamacare.

A estratégia dos conservadores é dificultar o máximo possível o acesso das mulheres ao aborto, de modo que não mais importe se o aborto é legalizado ou não. O poder de uma bancada religiosa e conservadora é tão forte que tem conseguido apagar, além das vozes das feministas, as próprias recomendações das associações médicas. O obscurantismo religioso novamente impede um avanço na luta por direitos básicos da mulher e sua saúde: em 2012 -2013 houve mais retrocessos dos direitos reprodutivos das mulheres que em toda a década anterior.

 

Nos EUA úteros sofrem mais regulamentação que armas
Nos EUA, úteros são mais regulados que armas.

No dia 8 de Julho de 2013 saiu a notícia que cerca de 150 mulheres presas no estado da Califórnia foram esterilizadas sem consentimento entre os anos de 2005 a 2011. O procedimento teria de passar pela autorização da paciente, junto a uma testemunha e depois autorização médica em todos os estágios, mas não foi isso que aconteceu. As mulheres eram forçadas a aceitar a esterilização através de coerção moral a fazer a cirurgia. Uma das presas disse aos investigadores que, assim que o médico James Heinrich descobriu que ela era mãe de 6 filhos, ele começou a forçá-la a fazer o procedimento. O médico alegou que suas cirurgias ilegais salvaram ao governo uma enorme quantia de dinheiro pois suas pacientes involuntárias estavam mais propensas a ter “crianças não planejadas a partir do momento em que elas procriariam mais”.  Essa mentalidade é inclusive endossada pelo Centro de Saúde Prisional da Califórnia, que sabia da existência das esterilizações.

Mas a briga contra as mulheres se adentra em todas as direções, no dia 26 de Junho de 2014 a Suprema Corte americana derrubou uma lei que impedia protestos na frente de clínicas de aborto. Tal lei foi aprovada para garantir a segurança das mulheres, que frequentariam as clínicas de assédios de conservadores anti-aborto, e protestos mais agressivos contra esses locais. A lei caiu por unanimidade de 9 juízes, todos homens. O governo de Obama apoiava a lei e lamentou a decisão da Suprema Corte. Logo após ser revogada grupos “pró-vida” fizeram seus protestos e assediaram mulheres que entravam nas clínicas .  Diante da gravidade dessa revogação tem de ser trazida à lembrança dos americanos, pois no ano de 1993 durante um protesto contra o aborto em frente a uma clínica um médico que trabalhava nela foi morto à tiros. Era também comum clínicas serem atacadas e vandalizadas por religioso e conservadores, além de protestos frequentes na frente das casas particulares dos médicos e donos das clínicas. Desde 1977 foram 11 mortes e mais de 200 ataques com bombas aos centros de abortos de acordo com a National Abortion Foundation. Os extremistas anti-aborto chegaram a conclusão de que assassinar os trabalhadores dessas clínicas é a única maneira de para o aborto.

Em 2015 o ataque contra o aborto e as mulheres foi agressivo, quase 400 leis anti-aborto foram colocadas para votação em todos os estados do país! Entre as leis, querem que informações falsas sejam passadas para as mulheres, como a dor que o feto sentiria ao ser abortado, e que mulheres teriam problemas mentais após o procedimento.
Em Wisconsin e Virginia proibiram o aborto após 20 semanas, no Arkansas uma lei proibiu o auxílio por telefone e vídeo-conferência entre médicos e mulheres no uso do medicamento, essa lei afeta especialmente as mulheres das zonas rurais, na quais não teriam condições financeiras de ir até a cidade para ter o auxílio. E lembrando que o medicamento usado para o aborto é relativamente simples, não exige internação, apenas o uso de comprimidos e repouso. Mas as mulheres precisam saber como se usa esse medicamento para que ele tenha a sua eficácia. Outras leis incluem a necessidade de um médico que tenha privilégios em certos hospitais, dificultado mais ainda o acesso das mulheres aos procedimentos, e a restrição ao aborto para menores de 18 anos, que precisariam da permissão dos pais, e também de um aval judicial, onde se decidiria se a menina teria maturidade ou não para fazer um aborto!

No estado do Kansas passou uma lei onde deve ser dizer “criança não nascida” (unborn child ), ao invés de feto. Sabemos como a linguagem importa, e mentiras são usadas constantemente para manipular as emoções das mulheres que querem abortar, para que elas desistam. No Tenesse uma emenda na constituição estadual que diz que o estado não protege o direito ao aborto e nem financiaria as clínicas de aborto, no mesmo estado uma mulher que tentou induzir um aborto em sua banheiro na 24ª semana foi presa e enfrenta uma acusação de assassinato de primeiro grau. Há também leis que obrigam as clínicas a terem pelo menos 50 cirurgias de aborto por ano, assim como hospitais. Essa lei é feita para que as clínicas sejam enquadradas como hospitais e assim terem gastos maiores para se adequar e que leva à falência e fechamento de clínicas.

No final de Novembro de 2015 vimos mais um ataque à uma clínica de aborto legal, no estado do Colorado, onde um atirador entrou na clínica e abriu fogo, matando 3 e ferindo 9. O atirador é um homem, branco de 57 anos e se declarou culpado e que é um “guerreiro para [proteger] os bebês”. Esse ataque acirrou mais ainda o debate, os políticos conservadores, atiçados pelos movimento Tea Party, clamavam que as clínicas de planejamento familiar estariam vendendo os tecidos fetais e partes de “crianças”. Um grupo anti-aborto fez um vídeo que viralizou, onde “mostrava” que as clínicas lucravam ilegalmente as vendas. A ultima notícia é que 2 pessoas anti-aborto foram indiciadas pelos vídeos falsos, a acusação é alteração de dados do governo e manipulação de imagens. A clínica de planejamento familiar afetada pelos vídeos já entrou também com um processo contra os autores.

O ano de 2015 teve poucos ganhos para as mulheres estadunidenses, e restritas à questão de métodos contraceptivos apenas. Na opinião das feministas americanas 2016 pode ser ainda pior, com as eleições em vista e os candidatos dos partidos nas pré-eleições o assunto será mais ainda atacado.

Nesse momento tão difícil para as mulheres dos EUA, queremos lembrar novamente da Senadora Wendy Davis, que por 13 horas sem descanso falou sobre o aborto, e lutou para que não houvesse retrocesso no Texas. A força dessa mulher, e de todas que a ajudaram nesse processo, deve nos inspirar para que a nossa luta aqui no Brasil seja avançada e para que possamos apoiar a luta feminista dos EUA contra essa violação dos seus direitos reprodutivos. Lembrando que muitas de nossas leis e políticas são influências diretas dos acontecimentos nos Estados Unidos, principalmente dos conservadores. As leis anti-aborto brasileiras se inspiram nas leis americanas também.

Precisamos discutir os desdobramentos da política estadunidense por que o retrocesso dos direitos das mulheres é uma tendência mundial. Aborto é uma das poucas pautas que unifica o movimento feminista, e de extrema relevância para nós feministas radicais. A luta é por todas as mulheres.

Os vários ataques que o feminismo atual sofre.

Esse pequeno texto eu publiquei no meu facebook depois de ver o texto da Folha. Eu publico aqui apenas para não se perder, pois a rede social é feita para esquecermos rapidamente de tudo que se passa, e acredito que esse assunto não é para ser esquecido.

Postado dia 12 de março de 2015

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Texto publicado na Folha de São Paulo online.

Nem faz muito tempo a mídia mainstream falava que ser feminista é coisa de lésbica peluda e de satanismo (como se isso fosse ruim) , a propaganda baseada nessas questões tinha como objetivo fazer com que mulheres tivessem medo de se organizar.
Mas agora não dá mais para falar mal do feminismo, agora Beyoncé, Emma Watson, Pitty entre outras são, e não dá para demoniza-las.

Mas a politica capitalista patriarcal liberal sempre dá um jeito de evoluir e tentar destruir o movimento. Então, para isso, pega-se um movimento que sempre foi feito por mulheres e para mulheres e agora forçam a entrada de homens nesse movimento. Através da propaganda midiática, que os homens tem controle, fazem com que a ideia de libertação das mulheres, que a segunda onda (não apenas o feminismo radical) clamava se transforme em “igualdade de gêneros”, ou seja reformismo.

Agora todos tem de dar as mãos e lutar juntos contra o machismo, e não o patriarcado. Os nossos discursos de que os homens são os agentes do patriarcado e da existência da violência masculina vira apenas “violência machista”. E assim lutamos contra uma nuvem preta que não tem forma. E assim lutamos contra nada. E o sistema continua.

“O feminismo precisa de homens” diz o texto da folha. Não, nunca precisou. Precisa agora para fazer ele perder o foco, para que os HOMENS possam nos estuprar, fragilizar e criar discórdia. O conhecimento dos homens não nos ajuda em nada, podemos e estamos criando nosso conhecimentos, a partir de nossas lutas e experiências. Estamos com nossas forças abrindo os espaços que os HOMENS nos negaram sempre, e continuarão negando.

Aquelas lésbicas peludas ainda existem, e são as que realmente pautam o feminismo como luta de libertação, e essas os homens continuam demonizando. Agora de maneiras diferentes: misandricas, femistas, sexistas, intolerantes, feminazis e até TERF.
As mulheres que sempre entenderam que o espaço de luta feminista precisa ser exclusivo são xingadas na tentativa de nos excluir da luta, pq nós resistimos com a verdadeira pauta feminista.

Aí entram os homens, fazendo textos, vem a ONU (que é liberal) e usa a Emma Watson como marionete, porque se atacarmos o discurso estaremos atacando ela (segundo os homens no poder). Aí vem uma professora na UFMG e numa entrevista cita que o feminismo não é mais coisa de “lésbica peluda”. E que todos podem entrar. E assim se vai jogando pedras numa luta que ainda resiste na base de muito esforço.

Nosso esforço é conseguir ganhos numa época onde até as mulheres que se dizem feministas estão contra as feministas. O controle masculino continua forte e criando novas maneiras de nos atacar. Nos fazem sentir mal pois agora além de ouvirmos os usuais xingos de homens, as mulheres estão ficando contra nós,e não é por culpa delas, mas sim da manipulação masculina.
Mas a resistência, principalmente a organizada em coletivas, tem de continuar e vai continuar.